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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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UM PRINCÍPIO DE OUTONO HÚMIDO…

 

Minha Princesa de mim:

 

O tempo arrefeceu um pouco, mas pouco. Está por cá um princípio de outono húmido, mas sem frio. Sabe-me a África tropical esta noite quieta (penso que gosto dela, falo sempre da noite quieta, quando a apanho). Sozinho neste casarão, à luz solitária desta mesa, escrevo-te de janela aberta sobre os campos que transpiram o vago calor do dia. Ladram cães, como vozes, dessas muitas que não entendemos mas nos trazem uma companheira paz. Também no Japão a senti assim, em qualquer ryokan perdido entre montanhas, depois de a noite ter fundido num campo só dela toda a verdura que eu via (a sugestão é de Fernando Pessoa, que nunca esteve no oriente, a não ser, talvez, quando o nosso Alberto o recitava...) Lia há pouco, para me entreter ou por estranha saudade, Os Contos do Genji, da Murasaki, de que já te falei. Esse enorme romance, o primeiro em toda a história da literatura universal, decorrendo-se por dois milhares e meio de páginas, tem sido comparado, no ocidente, a obras maiores de outras literaturas, como o Don Quijote, o Decameron, ou À la Recherche du Temps Perdu... Com este terá, como observou o Prof. Donald Keene, a mesma perceção do tempo que passa e vai deixando rugas nas belezas antes admiradas e desencantos nos sentimentos outrora possessivos... Prefiro, após repetidas leituras, traduzir Genji Monogatari, não por The Tale of Genji ou Le Dit du Genji , como se intitula nas traduções inglesa e francesa mais autorizadas, mas por Os Contos do Genji. É certo que toda a narrativa gira à volta da mesma personagem apolónica, o Príncipe Genji. Os cenários,os costumes, desejos e enleios, enredos, poemas e anseios, tudo se acorda com a cultura da corte no período Heian,na Kyoto de há mil anos. Mas é ficção. Subtil,muito subtil. Serão Contos, mas não de Hoffmann, serão eróticos, mas não como no Decameron ou em Tom Jones, nem tampouco como o que podemos ler na nossa literatura romântica, amorosa ou libertina. Lembrei-me do Don Juan, de Molina em diante. Parece. Parece e é e não é. Abreviando: o "castigo" de Genji não é o inferno. É o envelhecimento e, concomitantemente, o ser "traído" por uma amante, tal como, com outra, uma das primeiras, parecida com sua falecida mãe, ele "traiu" seu pai. O "castigo" de Genji é a mesma relação à circunstância, só que menos agradável. Toco aqui na percepção japonesa do Eu. Porque Genji não é um burlador, nem o seu desejo se afirma e realiza senão como relação circunstancial. "Conquista" como foi ou será "conquistado". Não é causa, é função. Não tem culpa. Não comanda, é um dado, como os outros. Ocorre-me um exemplo, em registo diferente, desse apagamento do Eu não circunstancial.  Volto a Hisayasu Nakagawa e a Augustin Berque, de quem te falei numa das minhas últimas cartas: Em Vivre l´espace au Japon, A.Berque conta o choque cultural que sofreu quando, ainda principiante em japonês, viu um filme de guerra japonês. Uma jovem enfermeira, apesar do perigo iminente, recusa-se a deixar o seu posto. Porquê?, pergunta-lhe o médico. Ela calava-se, escreve Berque, mas, de repente, disse-lhe, sem olhar para ele : suki desu. Legenda: Eu amo-te. Boa tradução, claríssima: sujeito (eu),verbo (amo), complemento (te). Ora, na frase japonesa não havia nem pronome nem desinência, nem sujeito nem objecto que pudesse indicar quem amava quem. E a mulher nem sequer olhava para o homem! O enunciado nada mais indicava do que a existência de um sentimento de amor algures na cena...  ...Como poderia essa enfermeira ter agido doutro modo? Para significar que o sentimento que a atravessava era irreprimível, que era verdadeiro o seu amor, ela não devia nomear-se: a verdade reside nesse surto espontâneo e natural. O acontecer está no cerne do que eu chamaria existencialismo japonês. Na nossa cultura judeo-cristã, no princípio Deus criou o céu e a terra. Deus agiu, fez, é causa; o mundo é efeito. No Kojiki, ou Crónicas das coisas antigas, escrito no início do período Heian, no século VIII, diz-se: No momento em que o céu e a terra se desenvolveram pela primeira vez, o nome do deus que se fez nos campos dos céus era Ameno Minakanusubii no Kami . Depois veio Takamimusubii no Kami. E depois Kamimusubii no Kami. Esses três deuses são deuses solitários que se criaram e depois se esconderam. Repara, lendo à japonesa, isto é, da direita para a esquerda, que eles são espíritos (kami) de (no)... Como os que se escondem nas rochas, nos lagos, nas árvores, etc, com que, no animismo japonês, os shintoístas se relacionam. Ou os kami que se escondiam nos ventos (kaze) tempestuosos que livraram o Japão da invasão sino-mongólica. Nome (kamikaze) dado depois ao "vendaval" que eram os pilotos suicidas, nos finais da 2ª Grande Guerra ou Guerra do Pacífico. O que me recorda ainda os termos em que o imperador Showa (Hirohito) formula a declaração dessa guerra: Chegámos infelizmente ao ponto em que a guerra rebentou contra os EUA e o Reino Unido, por uma necessidade que não poderia ser de outro modo. Era vontade minha? Voltando aos Contos do Genji,é curioso observar como ele, o Radioso Príncipe, mantém fiéis amizades com as suas ex-amantes. Há aí, talvez, um elemento transcendente às pessoas envolvidas, uma misteriosa relação do masculino ao feminino, como essa atração mútua dos princípios positivo e negativo que, finalmente, gera o movimento real do universo. Aliás, Genji é o filho dilecto do imperador por sua mãe (Kiritsubo-koi) ter sido a esposa preferida daquele, apesar de ter sido, primeiro, sua concubina. O imperador não tomará mais mulher até à que será a sua terceira esposa: Fujitsubo-chugu, tão parecida com a mãe de Genji, que a revive. E será de Genji o fillho (Renzei) que ela "oficialmente" terá do imperador e que a este sucederá... Imagina tu que,sei lá porquê, me lembrei de ir a Le Mythe de Sisyphe do Albert Camus, para saborear o primeiro parágrafo de Le Don Juanisme: «Se amar fosse suficiente, as coisas seriam demasiado simples. Quanto mais amamos, mais se consolida o absurdo. Não é , de modo algum, por falta de amor que Don Juan vai de mulher em mulher. É ridículo representá-lo como um iluminado em busca do amor total. Mas é precisamente porque as ama com igual arrebatamento, e, de cada vez, com todo ele mesmo, que tem de repetir esse dom e esse aprofundamento. Daí que cada uma espere trazer-lhe o que ninguém alguma vez lhe deu. De cada vez elas se enganam profundamente e apenas conseguem fazer-lhe sentir a necessidade dessa repetição. Enfim, exclama uma delas, dei-te o amor! Porque não haveria Don Juan de se rir? Enfim?, responde ele: Enfim, não! Só uma vez mais! Porque se deveria amar raramente para amar muito? Se o nosso querido Alberto  -  não o Camus, mas o português teu cunhado  - aqui descesse agora, ler-me-ia, com aquele riso que lhe alagava os olhos e lhes dava esse brilho tão bondoso à malandrice, um soneto de Luís de Camões:

      No tempo que de Amor viver soía,

      Nem sempre andava ao remo ferrolhado;

      Antes agora livre, agora atado,

      Em várias flamas variamente ardia.

      Que ardesse num só fogo não queria

      O Céu, por que tivesse experimentado

      Que nem mudar as causas ao cuidado

      Mudança na ventura me faria.

      E se algum pouco tempo andava isento,

      Foi como quem co  peso descansou,

      Por tornar a cansar com mais alento.

      Louvado seja Amor em meu tormento,

      Pois pera passatempo seu tomou

      Este meu tão cansado sofrimento!

Nem a Santa Inquisição teve algo a dizer... Mas sabes, Princesa distante, mas de mim sempre, o que penso do amor, procura fiel. Diferentes serão os sujeitos, diversas as circunstâncias, as consciências e as ignorâncias. Mas andamos todos à procura de um misterioso encontro que nos reconheça. Dou-te a mão.

 

          Camilo Maria