UMA CIVILIZAÇÃO DE ROBÔS?
Uma segunda reflexão sobre "O Amor das Três Laranjas" e Prokofiev leva-nos à consideração da arte num contexto político totalitário. Podemos dizer que, pragmaticamente, os sistemas políticos e os detentores do poder têm uma vocação totalitária. Por isso, é tão importante a institucionalização de contra-poderes, como também o respeito e defesa da liberdade de expressão. Esta, por disparatado que nos pareça, aqui e ali, o seu fruto tem pelo menos sempre uma virtude: interroga-nos. Prokofief saiu da Rússia em que já se anunciava o movimento "prolkul", a imposição pelo Estado, dos cânones da cultura do proletariado. Algumas décadas mais tarde, em 1942, Mao Tsé Tung afirmaria: "Exigimos a unidade da política e da arte, a unidade do conteúdo e da forma, a unidade de um conteúdo político revolucionário e duma forma artística tão perfeita quanto possível". Será preciso explicar algo mais? Em contraponto à tentação totalitária e ao centralismo autoritário, temos a tradição anarquista que, curiosamente, na cultura europeia, vai muitas vezes buscar a sua inspiração ao Evangelho. Do próprio "pai" de um socialismo anarquista que tanto influenciou, entre nós, uma certa geração coimbrã, disse o jesuíta Henri de Lubac, teólogo conciliar, que "exegeta de fantasia, Proudhon é, na nossa literatura, um dos grandes representantes da tradição bíblica"... Adversário do poder estabelecido, fosse clerical ou estatal, em nome da liberdade e justiça social, é todavia Proudhon quem diz: "Jesus é por excelência o tribuno dos povos... ...É por aí que foi, no seu tempo, e que permaneceu como expressão mais alta do génio popular, quer prático quer moral". Ou ainda: "A luz que ilumina os homens incendeia-me!" Mas não era apenas a autoridade dos poderes tradicionalmente estabelecidos que ele combatia mas a própria essência do poder como regulador de cima para baixo. Veja-se: "O meio mais seguro de fazer o povo mentir é estabelecer o sufrágio universal..." O ideal proudhoniano, o anarquismo, "é a ordem sem poder". E não era assim também para João da Ega? Não nos ocorrerá logo que Maurras se tenha inspirado em Proudhon, mas é Maurras quem escreve: "Um César anónimo e impessoal, todo poderoso, mas irresponsável e inconsciente, entretém-se a molestar os franceses desde o berço. Viva só ou queira associar-se, o cidadão francês sabe que vai encontrar, a cada passo do seu caminho, o César Estado, o César burocrático que lhe impõe ou propõe as suas diretivas com as suas proibições, ou as suas mercadorias com os seus subsídios"... O chefe de fila da Action Française, na defesa de um Estado nacionalista e forte e no ataque àquilo que, para ele, é a decomposição da França pela democracia, deita mão de argumentos que hoje ainda ressoam nos discursos ideológicos e políticos dos nossos neo-liberais: "O Estado francês, que hoje se mete em tudo, mesmo a fazer escolas e a vender fósforos e que, consequentemente, faz tudo infinitamente mal, vendendo fósforos ininflamáveis e distribuindo um ensino insensato, o Estado é, ele mesmo, incapaz de desempenhar a sua função de Estado..." e continua fustigando o facto de se sujeitar a autorização prévia a iniciativa ou a solução de questões locais ou vicinais, por se considerarem para tal incompetentes os cidadãos comuns, os mesmos que, todavia, são chamados a pronunciar-se, através das consultas eleitorais, sobre o regime político e económico do Estado, ou a "orientar pela sua escolha, pelo seu voto, a legislação, a alta justiça, a diplomacia, a organização militar e naval do país inteiro!"
Entre a utopia anarquista da "ordem sem poder" e a deriva totalitária da formatação estatal da vida de todos, a questão da organização da "polis", sobretudo a do convívio de consciências individuais soberanas, ainda não terá encontrado, apesar dos méritos de soluções como as dos sistemas orgânicos e estados corporativos, resposta mais equitativa do que a da democracia participativa. Como conceito. Na verdade, a manipulação do funcionamento dos sistemas representativos por grupos de interesses que, no menos mau dos casos, tratam comercialmente o comportamento político dos cidadãos, desafia-nos a um exercício contínuo de aperfeiçoamento dos espaços e mecanismos de participação de todos na vida da cidade. Mas tal reflexão não pode circunscrever-se à, nem sequer perspetivar-se pela, consideração de critérios das ciências políticas e sociais, como se o mero exercício de organização e mecânica de entidades, poderes e interesses, fosse inspirador e condicionante. Não. Ela deverá primeiramente incidir sobre a pessoa que, sendo necessariamente um ser em relação, é sempre uma referência plural, "as pessoas". Ora o ecossistema das pessoas, isto é, o meio ambiente em que vivem e se movem, é a cultura. Neste sentido, a cultura contemporânea apresenta facetas assustadoras, desde o domínio da propaganda política e religiosa (v. g. os fundamentalismos) até à vulgaridade do consumerismo. No seu libelo "La France contre les Robots", Georges Bernanos, em 1947, alertava para o perigo de nesta civilização do consumo, "o desenvolvimento das máquinas vir a desenvolver de maneira inimaginável o espírito de cupidez". E ainda: "Para as colossais máquinas de slogans, o objetivo não é convencer, operação demasiado delicada, mas destruir sistematicamente o espírito crítico, de o reduzir a nada - ou, pior ainda, de o ridicularizar, desonrar, como se ele fosse realmente uma forma inferior, suspeita, quase inconfessável, da atividade intelectual". Hoje, talvez devêssemos perguntar-nos se o ensino por aí dispensado não pecará por um excesso de fornecimento de noções e imagens, a consumir e debitar nos exames, e por uma carência de formação do espírito crítico e de estímulo do esforço pessoal.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 24.08.2012 neste blogue.