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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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UMA MÃO CHEIA DE AZUL…

 

Minha Princesa de mim:

 

Neste vai e vem da Europa ao Japão, quase sempre por Paris, conheci um leitor assíduo de Marcel Proust e da sua Recherche. É o único japonês que eu tenha encontrado com olhos de côr cinzenta-esverdeada. É poeta, melhor diria: filósofo-poeta. Homem muito manso, fotógrafo por convicção e exercício espiritual, chama-se Yoshimasu Gozo. Foi um dos entrevistados e filmados por Jean d´Istria, trabalho donde resultou o livro de Yann Kassile Penseurs japonais, dialogues du commencement. Aí fala Yoshimasu de si mesmo, de modo tal que o sinto muito próximo de mim, na medida em que, desde menino, me fui descobrindo a disposição maior de me espantar com todas as coisas, de me surpreender com tudo como se uma bombita explodisse. Esta tendência a ficar estupefacto perante as coisas talvez não se deva apenas a um espanto no fundo de mim. Talvez seja também devida a uma tristeza que mexe no fundo de mim. O sentimento de maravilhamento mistura-se talvez com um sentimento de tristeza. Mas essa tendência leva-me a ter afecto por tudo o que me espanta,mesmo se nem sempre consiga chegar a amar... Quando residia e trabalhava em Tokyo, em todos os dias úteis percorria, entre casa e ofício, a Aoyama-dori (ou avenida da montanha azul) e também passava por um cemitério que, na Primavera, se floria de sakura, o Aoyama-reyen. Conta Yoshimasu Gozo, na sequência da citação acima feita, que certa vez, no decurso de uma aula que estava a dar, na Universidade Seika, em Kyoto, sobre fotografia, um aluno lhe perguntou porque é que havia tanto azul nas fotografias que ele tirava. O professor surpreendeu-se até com a surpresa da pergunta que nele despertara um sentimento de que algo de si mesmo estaria por esclarecer. E confessa: Fiz viagens à procura de poemas,à procura de pensamentos. Era uma espécie de trabalho sobre a própria vida. Fiz essas viagens por mar, no Sul, por Okinawa e alhures, em busca do mundo do sal (shio) e do mundo do poema (shi). Isso tornou-se num poema chamado Tatuarem-me o coração. Mas deveis saber que a palavra japonesa para tatuar significa literalmente fazer uma incisão de azul. O azul do mar reflecte a côr misteriosa do mundo dos espíritos das gentes de antanho. Agora já percebo: sou atraído pela beleza da côr azul e simultâneamente sinto-a como côr vinda do mundo da morte. Ultimamente tenho lido Dôgen (monge e mestre budista da primeira metade do sec.XIII). Entre as suas máximas muito poéticas, uma menciona a montanha azul. A montanha azul implica o cemitério. Quando fui surpreendido pela pergunta sobre o azul nas minhas fotografias, sem dúvida que experimentei indistintamente tudo isso, pelos biliões de circuitos da memória. Também no meu costumado passeio pela Avenida da Montanha Azul e defronte do Cemitério da Montanha Azul, muitas vezes me perguntei se não deveria antes ser midori (verde) em vez de aoi (azul) mas fiquei com o sabor do azul do céu no coração. E cheguei a propor, como já te contei, ao Pierre Prigent, dono e chefe do restaurante Chez Pierre, sito mesmo defronte do tal cemitério, que, sendo ele Pedro,talvez aquele recanto de divinais iguarias se pudesse chamar Aux Clés du Paradis... É sempre com um riso qualquer que saio da angústia, da perplexidade ou da simples dúvida insolúvel. Como de uma aflição. Como as crianças se riem depois do choro de um trambolhão, ou do perdão da mãe que lhes alivia um disparate. As japonesas, quando, involuntariamente, pisam ou acotovelam alguém numa carruagem do metro atulhada de gente, poderão dizer sumimasen, gomenasai ou shitsurei shimasu, a pedir desculpa,mas taparão a boca em que lhes nasceu riso... Riem então, não por troça, mas pela atrapalhação da vergonha sentida. Em todos nós, a qualquer momento, surge uma contradição qualquer. O afrontamento de nós, o nosso verso e reverso, é-nos inerente. Mexe-se quase sempre muito a nossa alma, não tem passo possível sem contestação. O gosto da vida, essa surpresa agradecida com todas as coisas, tem necessariamente a irmã tristeza a acompanhá-lo, mais que não seja como aviso cautelar, como lembrança de imperfeição ou da variação dos tempos e dos ventos. Ou como aquilo a que poetas portugueses chamam saudade de mim, um anseio que vem do nascimento desconhecido da alma e procura alturas invisíveis, quiçá apenas alcançáveis para além da última surpresa, essa a que chamamos morte. Assim levantamos os olhos, e o azul do céu, sereno e límpido, nos enche a alma de uma misteriosa alegria. E assim, surpreendentemente se converte a tristeza.

   Lembras-te do Testament da Maria Helena Vieira da Silva? Começa assim: 

                        Je lègue à mes amis

                 un bleu céruleum pour voler haut

                 un bleu de cobalt pour le bonheur

            un bleu d´outremer pour stimuler l´esprit...

E eu dou-te a mão que aberta ergui ao céu tão azul que nos sorri cá dentro.

 

Camilo Maria

        
Camilo Martins de Oliveira