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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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UMA NOITE NO SOHO

 

Esta foi uma crónica escrita num tempo em que se podia ir ao cinema. E em que se podia ir aos bares. Um tempo em que havia uma boémia descomandada, desregrada. Trago esta crónica de volta, amarrada, quase amordaçada, no dia em que me dizem que já se vai poder ir ao cinema. Talvez a um bar. Desde que não se vá, como faziam Francis Bacon e Lucian Freud, a cavalo.

 

Hoje não vou ao cinema. Iria, se me prometessem que lá estavam Francis Bacon e Lucian Freud. Digo-vos quem são. São dois tipos que se revoltaram contra o futuro. Haverá quem diga que são ou eram dois pintores e eu, com a arrogância dos ignorantes, insisto: eram dois tipos sentados pantagruelicamente no presente. Comiam o presente, embebedavam-no e fodiam-no como quem respira, desvairado. Jogavam nas corridas, andavam à porrada, mergulhavam em champagne e caía-lhes o corpo exausto nas cavalariças, ao lado dos cavalos que tanto amavam.

 

Se eram amantes? Se isso não meter sexo, eram. Bacon, descendente do filósofo homónimo e empirista, era homossexual dia e noite, com vincada preferência por homens mais velhos que lhe arriassem forte e feio. Freud, neto do seu psicanalítico avô, era mais novo treze anos e preferia afundar-se na primordial e perlada fonte feminina. Caroline Blackwood, mulher de Freud durante parte dos anos de vida louca com Bacon, dizia: “Jantei quase todas as noites do meu casamento com Bacon. Ah, e também almocei.”

 

Sim, gostavam de jogar nos cavalos, de se atirar sem rede para os bares do Soho e frequentar vigaristas, ladrões, putas, chulos e mais gente prendada, mas o cimento dessa vida gelatinosa era a paixão pela pintura figurativa que cultivaram como flor de preço.

 

Ora lembrem-se: aquele tempo era um tempo que prometia arte abstracta para toda a santa e imóvel eternidade. E Bacon, primeiro, e Freud com ele, sentaram-se no presente, com o passado entre as pernas, pintando retratos de pessoas, nus com chapéu, papas aos gritos, meninas com cão branco, a carcaça de um boi no talho. Tenho de dizer: estilhaçaram o raio do futuro. Ainda há dias, seis anos, que interessa, o “Três Estudos de Lucian Freud”, em que Bacon pintou o amigo num delicado equilíbrio de luz e ouro, atingiu o francamente estúpido recorde de 120 milhões de euros, o que, a meu ver, já é mesmo gozar e humilhar o futuro.

 

Na arte e nas noites do Soho, e ai de quem veja alguma diferença entre uma coisa e outra, o que os uniu foi um paradoxal optimismo niilista. Tinham os músculos carregados de energia, de uma força nietzschiana, amoralíssima. Queriam, por junto, luxo e luxúria: pintavam, comiam, bebiam, esmurravam e eram esmurrados como quem faz amor. E eu, hoje, afinal, já nem preciso de ir ao cinema.

 

Manuel S. Fonseca