UMA SIBILA VOLUNTARIOSA
“Germa não reparava no que (Bernardo) dizia. Pensava em Quina. Daquela casa onde nada tinha mudado ou quase nada, onde os tetos mantinham a mesma pintura azul-cinzento de quando, depois do incêndio, fora reedificada, ela ria ficando cada vez mais ausente, pois os mortos só dos vivos se alimentam, e dependem apenas das suas recordações”. Agustina Bessa-Luís retratou em A Sibila com mestria, num cenário minhoto, uma mulher e cem anos da história portuguesa, desde 1850, quando o país encontrou forma de querer modernizar-se e um novo tempo simbolizado na consideração da herança de Quina. Eduardo Brito, dirigiu A Sibila para o cinema e tem razão quando diz que um romance tem muitos filmes lá dentro. Formalmente, trata-se do encerramento das celebrações centenárias de Agustina. Mas, pela riqueza da criação literária, fica pano para mangas, para descobrirmos um extraordinário universo de temas e de personagens, mas também de literatura de primeira água, numa obra que tem neste romance o seu paradigma. O filme respeita por inteiro o lugar sagrado da literatura e faz seguir as personagens como protagonistas vivos, que ajudam a compreender o país histórico, rico de exemplos diferentes e contraditórios, bem ilustrados no germinar das vontades.
Pouco importaria que Bernardo expusesse a sua tese preconceituosa, romântica, banal, contra o burguês. A verdade é que o tempo revelou Quina, a sibila, como um ser raro e apaixonante. Não é por acaso que se é “possuidora de todo o puro enigma do ser humano, vórtice de paixões onde subsiste, oculta, nem sempre declarada, às vezes triunfante, uma aspiração de superação, alento sobre-humano que redime e que transfigura”. Com um pano de fundo de história atribulada, depois de terem assentado as paixões mais violentas das guerras civis, é o país de Camilo que encontramos no que se segue, desde a Patuleia e da Maria da Fonte até ao José do Telhado, José Teixeira da Silva, de estranha aura, companheiro do autor de Memórias do Cárcere, na cadeia da Relação do Porto. Desde a Casa do Freixo até à Vessada, sente-se o Tâmega, Vila Meã e a vitalidade de Amarante. Quina admirava a doce evocação do pai, Francisco Teixeira, com “voz quente e cheia de paciente expressão”, apesar de uma vida pródiga e desinteressada. “Convém obedecer em particular, mas ser rebelde em geral”. E o certo é que “apenas restava a casa, que ele reconstruíra e também arruinara”. Por isso, impelia-a uma tentação “de se arrojar do leito e ir olhar o quinteiro, na madrugada cinzenta, porque sabia que o pai estava lá, aparelhando o carro que devia partir para o mato, enleando a corda nos fueiros e jungindo os bois que tinha descido das cortes, húmidas do vapor das suas respirações”. Contudo as “mulheres viam-se a braços com toda a responsabilidade, o que não era novo para elas”.
“Aos poucos, a casa da Vessada ficou entregue nas mãos de Quina, e ela foi considerada senhora absoluta dentro daquele pequeno reino de campos, moinhos, bandos de galinhas minorcas, cachorros que alguém salvou de morrer afogados nos ribeiros e que ladram, recuando, aos estranhos que têm, pelo meio da quinta, direito de passagem” … Simbolicamente, Germa lê o primeiro volume da obra de Pascoaes – Sempre e Terra Proibida. Com o testamento, ela mesma viria a ser proclamada principal herdeira, enquanto Custódio, provindo da casa da condessa de Monteros, não viu realizada a sua ambição, de ficar com a Vessada, abrindo-se aí uma história muito macabra de puro desvario. Enquanto Quina fora exemplo implacável de energias humanas que se digladiavam e se deram vida, Germa era o relicário atual de um extenuante legado de aspiração humana. “Nas suas veias, estão todos os infinitos estados do passado…”. E quem é ela, literata, “para ser um pouco mais que Quina e esperar que os tempos novos sejam mais aptos a esclarecer o homem e a trazer-lhe a solução de si próprio?”
GOM