VIAJAR E VER
5. ESTOCOLMO
Miscelânea de ilhas e ilhotas à solta e espalhadas pelo oceano, entre o verde campestre e azul marinho, florestas, parques arborizados, florestais, lagos, cais, canais, dezenas de pontes passeando por águas amenas e limpas, numa urbe amiga do ambiente, discreta, colorida e verde, junto à água. Eis a primeira impressão de Estocolmo, principal centro urbano e capital administrativa, política, cultural, comercial e financeira da Suécia. Conhecida por A Bela Sobre a Água ou A Veneza do Norte, integra 14 ilhas interligadas e circundadas de águas límpidas, oferecendo uma imensa variedade de atividades ao ar livre, desde canoagem, regatas de barcos à vela, passeios em caiaques, pequenas baleeiras à vela, gaivotas, barcos a remos, a vapor, a motor, ferries, de cruzeiro, iates. No Verão, apanha-se sol, nada-se e mergulha-se em locais do centro citadino. Há a pesca da perca, da truta do mar e eperlano, entre outros peixes. Quilómetros de espaços verdes, zonas protegidas e passeios pedonais para lazer e desportos. Tradicionais casas de madeira, típicos chalés (um deles, dos Abba), o primeiro museu ao ar livre do mundo (Skansen), pousadas e hotéis em várias ilhas do arquipélago, são um convite a olhar e ver, ao silêncio, sossego e tranquilidade. Este vanguardismo ambiental, ecológico e de culto da biodiversidade, também se observava pela preferência dada à alta tecnologia e energias limpas. E por um sistema de fiscalização do congestionamento, em que todo o centro da cidade estava dentro da zona do imposto de congestionamento de veículos. Daí ser tida como uma das cidades mais limpas, organizadas e de melhor qualidade de vida. Uma das mais habitáveis e qualificadas mundialmente. Em comunhão e conjugação de esforços com a ausência de poluição do meio ambiente, amor pela natureza e pelos animais. Por maioria de razão ao saber, pela guia local, serem os patos, aos milhares, um símbolo de Estocolmo, que os seus habitantes muito prezam. Só que, à época, iam rareando de dia para dia. Queixas, queixumes, denúncias, reclamações, inquéritos, investigações, policiamentos, alertas e quejandos não resultavam. Diminuíam paulatinamente em quantidade, mas não apareciam mortos, nem doentes. Os remanescentes estavam luzidios e saudáveis. Adensado o mistério, intensifica-se a fiscalização e a vigilância, em especial durante a noite, e eis que, entre o incrédulo e a estupefação, se conclui que eram furtados, cozinhados e confecionados como pato à Pequim em restaurantes chineses, fazendo as delícias das papilas gustativas dos comensais seus amantes, mas à revelia de todas as regras. A reação não se fez esperar: sancionamento dos infratores e encerramento de todos os restaurantes chineses, com a subsequente proibição de novas aberturas (desconheço até quando). Uma punição, ao mesmo tempo uma tentativa de expiação e redenção, de uma cidade tida planetariamente como das mais seguras, em contraste flagrante com a insegurança dos seus patos. Naturalmente, qual fénix renascida, os patos regressaram gradualmente e sem constrangimentos ao seu habitat, para equilíbrio e encanto de Estocolmo!
Era sábado, meio solarengo e cinzento, sem chuva, chuviscos ou aguaceiros, mas ameaçando. Num dos primeiros percursos pedonais, paragem na Rorstrandsgatan, uma cosmopolita rua popular, com cafés, restaurantes, pubs e aprazíveis esplanadas, numa atmosfera colorida de fim de tarde, onde imperava a boa cerveja. No decurso de um passeio noturno, desfiles e concertos de música ao ar livre, com músicas e atrações artísticas de várias latitudes, desde a clássica, ao rock, pop, latino-americana, anglo-saxónica, nórdica, incluindo o samba, com representações essencialmente da América Latina, a rainha da festa, dado que, pelo que vi, havia representações do Brasil, México e Cuba. Milhares de pessoas passeando, vendo, ouvindo, cantando e dançando, numa festa popular de adultos e imensa juventude. Muitos jovens adultos e adolescentes liberais no vestir, no penteado, nas cores, tatuagens, numa exposição pública aberta e descontraída de afetos e tendências sexuais. Num curto intervalo de tempo, vários jovens expelem saliva e escarros para o chão. Outros, incluindo adultos, embriagados e desinibidos pelo álcool, não se inibem de urinar, por vezes sem pudor. O estado eufórico e a massificação não justificam tudo. Como não o justifica ver ruas sujas de beatas de cigarros, pastilhas, papéis, latas, garrafas de vidro e plástico, a desmistificarem o mito do “muito ordenado” e “sempre limpo”. Cada caso é um caso, não se podendo generalizar ao todo, por certo, mas há situações, mesmo que pontuais e mais permissivas, que são mais chamativas onde menos se espera, nomeadamente para quem de visita de países pontuados como menos desenvolvidos. Também numa paragem na cidade de Karlstad, em plena rua, observo em flagrante um homem avinhado. Sempre me constou que os suecos têm a noção do ridículo, pelo que, quando bebem em excesso, são discretos e tentam ocultá-lo na sua privacidade, razão pela qual me surpreenderam tais condutas. Apesar de, nalgumas situações, lhes estar associada uma progressiva e progressista evolução e liberalização de costumes, tendencialmente a imitar pelos países menos avançados. Retive, a este propósito, a naturalidade com que jovens e casais homossexuais se relacionavam, eram aceites pelo cidadão comum e estão integrados na sociedade em geral, sem preconceitos e respeito recíproco. Foi-nos muito recomendado um bar-restaurante, essencialmente gay, onde toda a gente ia para beber e saborear o melhor chocolate de Estocolmo. O que fiz, com a família, num ambiente tolerante e bem frequentado, entre turistas e locais, sem constrangimentos ou qualquer tipo de discriminação pela diferenciação.
Cidade discreta, elegante e contida na sua dignidade e simplicidade, não é de deslumbramentos monumentais, arquitetónicos e artísticos, mas suficientemente chamativa, onde prevalecia uma notória preservação patrimonial, a nível histórico e edifícios em geral. Destaque para o Palácio Real e Render da Guarda, a Velha Catedral, o Parlamento, Palácio de Drottningholm, da Bolsa, Igreja de Riddarholms-Kyrkan (das cerimónias fúnebres reais), o Teatro Real, Nationalmuseum, o Nordiska Museet e o Jardim do Rei. O tempo escasseava, havia que estabelecer prioridades, optando-se pela Stadshuser (Câmara Municipal) e pelo Vasamuseet para visitas mais pormenorizadas. Stadshuset, um dos símbolos cimeiros de Estocolmo, mais austera e sóbria exteriormente, é mais majestosa no interior, pelo seu design. Tem como atrações maiores o Salão Dourado, o Salão Azul e o Salão da Assembleia. O primeiro, revestido com mosaicos de parede de influência bizantina e milhões de fragmentos de folha dourada, tem como tema central a Rainha do Lago Malaren. O segundo, revestido com azulejos manuais, é o salão de banquetes, nele se realizando as festividades anuais do Prémio Nobel, instituído pelo químico e inventor sueco Alfred Nobel. Interroguei-me (e interrogo-me) do porquê de apenas dois lusófonos, até agora, terem sido contemplados (o médico Egas Moniz e o escritor José Saramago, ambos portugueses), com especial ausência do Brasil. Falta de estratégia injustificadamente adiada e cada vez menos justificada? Mera injustiça? Que tem feito e poderia fazer, por exemplo, a CPLP? Fica a questão. A Assembleia, por sua vez, é um belíssimo salão onde se reúnem os vereadores camarários. No topo de uma torre com 106 m de altura, com vista plena sobre a urbe, o símbolo heráldico da Suécia, as três coroas, do século XIV. Já o Museu Vasa, o mais popular da cidade, aberto em 1990, tem como tema a recuperação e restauração da embarcação real de guerra Vasa, após ter naufragado na viagem inaugural, em Agosto de 1628. Impressiona pelo porte majestoso, pela majestosa ornamentação de mais de setecentas figuras esculpidas em alegoria e propaganda ao poder, sendo tido para muitos, à data, como o navio mais poderoso do mundo. Na zona mais antiga da cidade, em Gamla Stan, por entre ruas estreitas que lembram uma cidade medieval, há-as movimentadas para todos os gostos, incluindo pechisbeque, artesanato de qualidade e lembranças raras. O modernismo pode ser apreciado no Centro Cultural e obelisco de vidro em Sergels Torg. Inovador foi frequentar um bar todo em gelo (paredes, teto, chão, balcão, bancadas, mesas, prateleiras, acessórios), para encanto da Primogénita e da Benjamim. Além da curiosidade de ver, exteriormente e de passagem, o que era tido como o teatro mais pequeno do mundo, com 21 lugares. Evocação do dramaturgo August Strindberg, junto da sua última morada, atualmente um museu. Sem esquecer Astrid Lindgren, autora de A Pipi das Meias Altas.
Orientados por uma guia local, expressando-se em bom português, apercebi-me que para além dos emigrantes lusos serem tidos como trabalhadores e bem vistos, sol e praias, fado, futebol, o vinho do Porto e os Madre Deus eram a sinalização mais marcante de Portugal na Suécia. Houve queixas em relação à pouca difusão e incentivo do nosso idioma, a começar pela nossa embaixada. Esta omissão e ausência de estratégia (lusófona, e não apenas lusa), a que acresce a pouca divulgação em língua sueca e inglesa da cultura e ciência lusófona, inclusive via traduções, nomeadamente para a língua da globalização, não será também responsável para a pouca representatividade, até hoje, de lusófonos laureados pelo Nobel?
Foi assim que me confrontei com uma cosmopolita e inclusiva Estocolmo, onde o indígena se encontra e mistura com o emigrante, o turista, o estrangeiro, onde o mito das beldades femininas suecas, tão sacralizado, se confirma moderadamente e sem exageros. Questionei-me do porquê do síndrome de Estocolmo, associado ao assalto ao Kreditbanken, em Agosto de 1973, em que as vítimas defendiam os seus raptores após prisioneiras vários dias, com condutas não colaborantes com a justiça nos processos judiciais, quando já em liberdade. Lembrando o livro e o filme A Bela e o Monstro. Talvez Ingmar Bergman, melhor que ninguém, o pudesse analisar, dada a sua filmografia, tão analítica e introspetiva, perguntando e querendo dar respostas, numa sociedade concomitantemente contida e sigilosa, ao não exteriorizar e esconder, com reserva, reservas mentais, por ser ou poder ser publicamente ridículo. Num país também tido como vanguardista em termos humanos, de progresso e avanços civilizacionais, onde o que agora é tido para muitos como anormal e chocante, acaba por ser, no futuro, assimilado e tido como normal pelos críticos de antanho, aceitando, adaptando e imitando o que anos atrás se censurava. Escândalos associados à vida de divas suecas como Greta Garbo e Ingrid Bergman, foram por muitos absorvidos e tolerados.
Foi o que retive de Estocolmo, capital e máxima representante da Suécia, na sua comedida elegância, simplicidade e vanguardismo.
Impressões pessoais de Estocolmo, em Agosto de 2008
Texto revisto em 02 de Novembro de 2015
Joaquim Miguel De Morgado Patrício