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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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VOLTAR AO ESSENCIAL

  


1. Nestes tempos do imediatismo, do ruído ensurdecedor causado pelas centrais da estupidificação, é urgente voltar ao essencial. E o que há de mais fundamental, essencial, do que a questão de Deus? Há Filosofia sem a pergunta por Deus? Se não quisermos permanecer na superfície ou nas simples convenções, se quisermos apresentar seriamente o fundamento da dignidade humana, dos direitos humanos, não é aí que vamos desembocar? Como diz Kant, o ser humano é fim e não simples meio. Ora, o que é que é fim em si mesmo senão o Infinito? E o que tem o ser humano de infinito senão a pergunta ao infinito pelo Infinito? O ser humano tem dignidade porque de pergunta em pergunta acabará por desembocar na pergunta pelo Fundamento último e o Sentido último, por outras palavras, na pergunta por Deus, independentemente da resposta que lhe dê: uns decidir-se-ão pela fé, outros pelo agnosticismo, outros pelo ateísmo.


Aprofundando, voltamos sempre à questão de Deus. Na sua obra Der Gott der Philosophen (O Deus dos filósofos), Wilhelm Weishedel mostrou que a questão de Deus constitui precisamente “a problemática central da Filosofia”, de Tales e Anaximandro a Nietzsche e Heidegger. “Mesmo onde a teologia filosófica está em decadência, continua a ter uma importância decisiva, pelo menos como algo que há que superar antes de qualquer outra coisa. Por isso, com razão o discurso sobre Deus é considerado como o problema essencial da Filosofia.”


2. Nesta quadra pascal, regresso, mais uma vez, a esse sublime e abissal texto, pavoroso, um dos grandes da grande literatura alemã, que Jean Paul, pseudónimo de Johann Paul Friedrich Richter, escreveu em 1796: "Rede des toten Christus vom Weltgebäude herab, dass kein Gott sei" (Discurso do Cristo morto, a partir do cume do mundo, sobre a não existência de Deus).


Nele, o célebre escritor descreve um sonho-pesadelo. Pela meia-noite e em pleno cemitério, numa visão apavorante, o olhar estende-se até aos confins da noite cósmica esvaziada, os túmulos estão abertos, e, num universo que se abala, as sombras voláteis dos mortos estremecem, aguardando, aparentemente, a ressurreição. É então que, a partir do alto, surge Cristo, uma figura eminentemente nobre e arrasada por uma dor sem nome. E, com um terrível pressentimento, "os mortos todos gritam-lhe: "Cristo, não há Deus?" Ele respondeu: "Não, não há Deus." Então, a sombra de cada morto estremeceu, e umas a seguir às outras desconjuntaram-se. E Cristo continuou, anunciando o que aconteceu no instante da sua própria morte: "Atravessei os mundos, subi até aos sóis, voei com as galáxias através dos desertos do céu; e não há Deus. Desci até onde o ser estende as suas sombras, e olhei para o abismo, gritando: "Pai, onde estás?" Mas apenas ouvi a tormenta eterna, que ninguém governa." Quando, no espaço incomensurável, procurou o olhar divino, não o encontrou; apenas o cosmos infindo o fixou petrificado com uma órbita ocular vazia e sem fundo, "e a eternidade jazia sobre o caos e roía-o e ruminava-se". O coração rebentou de dor, quando as crianças sepultadas no cemitério se lançaram para Cristo, perguntando: "Jesus, não temos Pai?" E ele, debulhado em lágrimas, respondeu: "Somos todos órfãos, eu e vós, não temos Pai." "Nada imóvel, petrificado e mudo! Necessidade fria e eterna! Acaso louco e absurdo! Como estamos todos tão sós na tumba ilimitada do universo! Eu estou apenas junto de mim. Ó Pai, ó Pai! Onde está o teu peito infinito, para descansar nele? Ah! Se cada eu é o seu próprio criador e pai, porque é que não há-de poder ser também o seu próprio exterminador?"


Para Jean Paul, a morte de Deus não era ainda um destino espiritual inevitável. Apenas a tentação de uma possibilidade ameaçadora. E ele queria estar prevenido: que, quando a tentação o visitasse, soubesse de antemão o abismo sem fim, pavoroso, a que a morte de Deus conduz. Quando acordou do pesadelo ateu, a sua alma "chorava de alegria, por poder de novo adorar a Deus - e a alegria e o choro e a fé nele era a oração".


Um século depois (1882), o louco de Nietzsche proclamou a morte de Deus: "Quem o matou fomos todos nós, vós mesmos e eu!" "Nunca existiu acto mais grandioso." Ao mesmo tempo, Nietzsche tem consciência aguda do que se segue: "Para onde vamos nós, agora? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para os lados, para a frente, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima de um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?"


O filósofo Gilles Lipovetsky escreveu, em A Era do Vazio: "Deus morreu, as grandes finalidades extinguem-se, mas toda a gente se está a lixar para isso. O vazio do sentido, a derrocada dos ideais não levaram, como se poderia esperar, a mais angústia, a mais absurdo, a mais pessimismo." Mas mais recentemente, no seu livro A Sociedade da Decepção, reconhecendo "a reafirmação do religioso", vem dizer que, "privados de sistemas de sentido englobante, numerosos indivíduos encontram uma tábua de salvação no reinvestimento de antigas e novas espiritualidades capaz de oferecer a unidade, um sentido, referências, uma integração comunitária: é o que o Homem necessita para combater a angústia do caos, a incerteza e o vazio".


3. Aqui chegados e tomando consciência de escândalos que clamam aos céus, impõe-se que a Igreja se pergunte pela sua responsabilidade no aumento do ateísmo.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 15 de abril de 2023